A HISTÓRIA DE MODERN SOCIETY
A INVENÇÃO DO SALVADOR
Na escuridão do abismo, fez-se a luz que tomou conta dos olhos de The King Sebastian, o ilustrado monarca de Modern Society, um nobre de família e linhagem tradicional. A luz que o cegara revelara a conclusão de sua obra prima, a construção de um cavalheiro perfeito, The Perfect Knight. Os poderes deste o tornariam capaz de aprisionar o abuso de poder que havia ganhado espaço e relevância nos mais diversos setores do reino.
Os cientistas amealhados pela coroa acreditavam nesta solução técnica como a cura para o descontrole das mentes e dos corpos dos cidadãos. A criação do cavalheiro era um elemento fundamental para o reestabelecimento do equilíbrio entre as forças sociais do interior do reino e entre seus habitantes, restaurando a glória passada.
The Perfect Knight não tinha uma fácil missão pela frente, mas a perfeição dada pelas mãos de seus criadores, conseguiria o tornar puro o suficiente e desprovido dos sentimentos de fraqueza para a reconquista da lei e da constituição. Sob o império do direito, que regulava as relações civis e de poder, o reino havia prosperado, valorizando a vontade e a liberdade dos cidadãos e orientando-os para a realização do bem comum.
A ambição desenfreada de alguns, que objetivavam ter uma posição social, política e econômica superior à dos demais, terminara por colapsar o modelo de sociedade equilibrado. As ideias democráticas e de diversidade que circulavam ao longo das terras e do Sea of Culture foram pouco a pouco cedendo lugar para as intrigas, as discussões e ao ódio. Comprometidos com a própria ambição, buscaram hierarquizar Modern Society, formando milícias locais e fixando seus domínios. Estabeleciam que determinados direitos universais seriam restritos apenas a alguns.
The King Sebastian sabia que estas ideias surgiam de diversos setores, que a propulsionavam nos ares e na água, alimentando a ignorância e a intolerância dos cidadãos. A maravilhosa invenção da coroa, permitiria atacar estas estruturas, sendo o cavalheiro insensível aos argumentos, impassível à corrupção e à falibilidade humana. A mais primorosa técnica havia sido utilizada na produção de The Perfect Knight, o indivíduo certo, na hora certa e com a missão certa: a restauração da liberdade e da democracia.
A DESCONFIANÇA DO DEMIURGO
A invenção de Sebastian era vista com desconfiança pelo espírito encarregado de manter o equilíbrio dos poderes, The Constitutional Lady. Desde o início de sua missão, manteve-se alerta aos perigos que os valores democráticos e de diversidade poderiam correr. Mas fora impossibilitada de agir pela confiança de Sebastian de que a instabilidade de valores logo passaria, crendo na força da cultura e da igualdade e justiça que brotavam no Justice Garden e terminavam por desaguar no oceano.
A desconfiança em relação ao The Perfect Knight, por parte da Lady, era um incomodo à Sebatian, que não dava grande atenção as críticas e aos apontamentos da entidade. Muitas vezes, o rei omitia de seu povo as ressalvas feitas. Quanto a proposta do cavalheiro, a coroa preservava uma crença antiga de que a salvação sempre viria, que o perfeito predestinado iria restaurar a glória caso Modern Society fosse atingida pela desgraça.
A crença manteve, em parte, a cautela dos cidadãos frente à ambição e ao abuso do poder de alguns, permitindo uma aceitação lenta de intolerância e da ignorância. Em doses pequenas, o povo fora conduzido ao inaceitável, fora normalizando e tornando trivial ações e valores contrários àquilo que almejavam e queriam de sua cidade.
A agonia de The Constitucional Lady era satirizada e desacreditada por influência dos boatos espalhados pelos ambiciosos cidadãos, que com avanços e recuos constantes, confundiam à todos, inundados na crise dos valores democráticos. Primeiramente, pouco a pouco os direitos foram sendo esvaziados, perdendo-se no sentido e no tempo. Após, foi a vez da diversidade e da integração existente entre as diferentes áreas do reino.
Se a chuva e a escuridão ameaçavam consumir por inteiro àquele povo e seu destino, a Lady ali permanecerá, sempre no intuito de renovar suas esperanças e permitir a recuperação dos valores. Como dissera uma música antiga, própria dos povos com vocação ao mar, “Mas há sempre uma candeia... Dentro da própria desgraça... Há sempre alguém que semeia... Canções no vento que passa... Mesmo na noite mais triste... Em tempo de servidão... Há sempre alguém que resiste... Há sempre alguém que diz não...”.
Confiante na invenção, The King Sebatian e The Constitutional Lady se uniram para fazer com que The Perfect Knight cumprisse sua sina, dando a vitória sobre as forças sombrias. A aposta da coroa, agora se mostrava mais concreta do que nunca, estava finalizada e pronta para a restauração prometida.
A CAPITULAÇÃO DO PREDESTINADO
A AGONIA DA JUSTIÇA
Com a capitulação de The Perfect Knight, o desespero tomara conta dos defensores da democracia, da liberdade e da diversidade. Aqueles que rodeavam The King Sebastian se dividiram em dois grupos, a grande maioria optou pela sua rendição ao cavalheiro, formando parte de suas equipes de dominação. Destes, alguns ainda conservavam a esperança de reverter a situação e do retorno aos planos originais, podendo-se se aproveitar de tal proximidade. Outro grupo, optou por manter a resistência às escondidas em diversos setores, organizando uma rede de informação e ações para identificar os pontos frágeis do cavalheiro que haviam criado.
No interior do grupo dos resistentes, uma parte ficou responsável por migrar e se integrar discretamente aos setores do reino. Poucos ficaram com a tarefa de garantir a segurança da coroa e da Lady. The King Sebastian foi convidado a partir para fora dos domínios de Modern Society, juntando-se a outros no reino dos espíritos e tentando organizar uma reação externa. O aceite dependia da concordância da Lady, que se recusou a acompanhar, mas incentivou que Sebastian fugisse o mais rápido possível. A notícia da fuga não demorara a chegar ao cavalheiro, que a difundiu entre todos os cidadãos.
A agonia da derrota calou a todos, recaindo sobre o reino o caos e a desordem. As milícias e os rebeldes ainda não submetidos ao poder do cavalheiro, fizeram o seu jogo e se comportaram de modo incontrolável. Como num xadrez, a estratégia de difusão da notícia da fuga servira como uma luva, dando espaço para que os grupos opostos conquistassem a reprovação social. Frente a insatisfação, o cavalheiro teria a justificativa para seu domínio e a instalação de uma nova ordem social, sem as marcas nefastas das características humanas. Após o terror, terminaria por derrubar um a um como um domino, consolidando seu poder e a sua dominação sobre toda Modern Society, tendo se livrado de toda a resistência e a concorrência que poderia existir. A horda de intolerantes tinha, enfim, um aliado momentâneo, com planos distintos, mas com a mesma ausência de empatia.
Se Sebastian não mais representava um risco aos planos de The Perfect Knight, a Lady ainda poderia vir a fazer sombra sobre seu poder. Portanto, a esta caberia ao próprio cavalheiro neutralizar. Utilizando-se do caos instaurado, abriu passagem para que todos pudessem chegar até o templo da entidade e ao Justice Garden, ao mesmo tempo em que muitos vinham pedir ajuda, o caminho permitiu a caça de seu espírito pelos intolerantes. Não mais podendo caminhar livremente pelos jardins, tendo constantemente de fugir de perseguidores, a Lady termina por se refugiar no local mais seguro, sendo forçada a fechar os portões de seu templo para evitar tornar seus seguidores alvo fácil das milicias, dos rebeldes e, claro, de The Perfect Knight.
Neutralizada no centro do Bureaucracy Circle, seu espírito fora confinado a assistir a desgraça se abater sobre Modern Society. Os jardins que alimentavam o espírito do reino, nada mais eram do que a visão próxima de sua janela, vendo no horizonte a fumaça da destruição que se estendiam do Power Canyon até o Law Park. Presa, The Perfect Knight sabia que as forças da entidade minguariam pouco a pouco, a tornando um simples espírito decorativo de um tempo passado, guardado em seu museu, o Constitutional Monument.
A DOMINAÇÃO TÉCNICA
Sob o sol do meio-dia, nada mais conteria a ambição desenfreada de The Perfect Knight e sua técnica do poder e da dominação, a construção de uma organização social limpa dos defeitos e das características humanas. A sua dependência de setores da Bourgeoisie Village o fizeram aguardar a imposição total de sua vontade sobre a região, o que a colocou como o último espaço de resistência no âmbito da Civil Society. Costumes e práticas seriam toleradas, mas não por muito tempo.
Se as sombras do perfeito cavalheiro não haviam chegado aos mercados de maneira impiedosa, seus comandados não demoraram a adentrar, impondo a ordem e uma disciplina rígida sobre a vida. Sufocam-se os adultos e os adolescentes, afinal, tem-se que molda-los aos “novos padrões”, escaparam-se as crianças. Guardas que pertenciam as milícias e alguns grupos rebeldes foram alistados por The Perfect Knight para aplicar as suas instruções, tendo vantagens aqueles que fossem iguais a si, mais resistentes aos sentimentos humanos. Deste modo, poderia lentamente adaptar os cidadãos de Modern Society à sua nova ordem sem grandes empecilhos.
A segurança para dos mercadores era dada pelos milicianos de The Perfect Knight, que cuidavam para instituir a paz no consumo, evitando roubos, depredações e a mendicância nas proximidades. O medo e o terror das lembranças dos tempos de milícia se fundiam com a imposição da nova ordem pelas mesmas pessoas que o cavalheiro havia vencido. Pareciam apenas mudar de cor e de ordens, a perfeição do novo comandante não se alertava a esta confusão nas mentes das pessoas, que projetavam neste os mesmos sentimentos que tinham antes. Porém, a impotência era tida como maior.
Enquanto a falta de esperança tomava os adultos e os adolescentes, que faziam destas cinzas, às crianças ainda restava os brilhos nos olhos e alegria pela vida. Esta liberdade na infância seria o próximo alvo da intervenção de The Perfect Knight, mas não por agora. A cautela estratégica não era característica de seus comandados, por mais desprovidos de empatia que fossem, eram humanos e suscetíveis a falhas e a desobediência.
A HUMANIDADE DO CONTROLE
Na praça do mercado, por volta do meio-dia, as crianças correm para retornar as suas casas e brincar após a Escola. Este sinal da velha ordem, ainda permanecia resistente, repetindo-se todo o verão. A Escola fora conservada, mas estava nos planos do cavalheiro predestinado. O cerco a The Constitutional Lady levou ao seu aprisionamento no Constitutional Monument, o que era fundamental ao domínio de The Perfect Knight. Pouco a pouco, os valores de justiça e igualdade foram brotando com menos intensidade no Justice Garden e, consequentemente, impedindo que estes irrigassem o reino através do Sea of Culture.
Num dia de verão, o Justice Garden não conseguiu irrigar suficientemente o mar que o banhava, ausentando estes valores por todo o dia. Enquanto as crianças corriam na praça do mercado da Bourgeoisie Village, sob um belo sol, a luz tornava as frutas expostas mais coloridas e intensas, despertando a atenção de muitas. Às vezes, acompanhadas dos pais, as crianças poderiam adquiri-las, porém, para outras, eram apenas um atrativo que viria a habitar o imaginário. Deslumbrado com a coloração, um pequeno menino observou uma destas se desprender da banca e saltar ao chão, pulando coloridamente num ambiente às vésperas da escuridão. Rápido, saltou-se junto a laranja que o sol tornara radiante e a apanhou, como se fosse o mais doce tesouro existente.
A beleza das frutas não apenas despertava as crianças, mas também a guarda responsável pela manutenção da ordem na praça. Um jovem guarda alistado, conhecido pelas suas poesias nas épocas gloriosas de Modern Society, fora o responsável da tarefa, junto a um veterano que havia servido as milícias anteriores e colaborado na destruição do equilíbrio entre as forças sociais. A pouca idade que separava a criança e o jovem uniu os olhares do dois, focando-se na fruta a saltar, porém, com visões distintas do que fazer. Enquanto a criança arregaçou seus dentes para saborear, o guarda a interpretou como alguém a conturbar a paz do mercado.
Inexperiente, talvez por acidente ou pela fixação nos desígnios de The Perfect Knight, sacou a arma da cintura e deu um tiro no pequeno menino, ferindo-lhe a perna. O tiro fora seguido por outro de seu experiente companheiro naquele turno, deixando a todos aliviados com a segurança. Mas não cessaram, o terceiro os deixou em alerta, pelo sexto, toma a todos de vergonha, e no décimo terceiro, atinge a todos os cidadãos.
Não se tratava de impor a ordem, à vista de todos, o jovem guarda enlouqueceu após o sétimo tiro. Ao final do último, o experiente soltou um sorriso de que a missão havia sido cumprida. O terror e o ódio haviam vencido, não houve cidadão em Modern Society que não tivesse escutado, não havia mais mercado que houvesse condições de justificar aquela cena.
O CAVALHEIRO QUE DO ABISMO RESSURGIU
Ao som de tais barulhos apavorantes, os cidadãos que se espreitam nas cidades, nas vilas, nas aldeias ou espalhados pelos campos, e indagam-se: “O que The Perfect Knight estava os tornando? O que se aguardava para eles? Como, sem armas, poderiam se revoltar contra aquele poder que haviam permitido criar?”. O meio-dia e quinze minutos marcavam no relógio do mercado, anunciando em suas badaladas que o tempo de justiça não começara, mas não tardaria por vir. O relógio para e a surdez que atinge os presentes se encontra entre o espanto, a morte de suas subjetividades, e a impotência frente o domínio da injustiça.
Se os poucos jornais do dia-a-dia alimentavam, como ração, aqueles havidos por alguma, mínima sequer, esperança, os sons da tragédia do mercado terminavam por a transformar em cinzas. O sangue do pequeno menino escorre e inunda de dor as mercadorias, os transeuntes, os mercadores e os que consomem, assim como o Sea of Culture. Dos olhares incrédulos, o silêncio que se fez.
A frustração percorre e perpassa por todos, até o jovem guarda reagira a si próprio e enlouquecera, algo há em seus espíritos que condena aquele horror. Só não se lembravam, ou não sabiam, do segredo do The Perfect Knight, ao qual The King Sebastian não havia revelado publicamente. Os cientistas haviam o criado para salvar e libertar aquele povo a partir de características não humanas, era insuscetível à falibilidade, aos sentimentos, à empatia.
Os abismos do Power Canyon, que separavam este do Justice Garden, escondiam segredos para além da criação do cavalheiro. Se o que fora predestinado falhou, era inacreditável que daquele local poderia surgir algo novamente, pois destruiria qualquer tentativa de criação de um concorrente a este. A “verdade” dos técnicos, com a sua mais avançada ciência, falhara, produzira aquele que enterraria por vez qualquer possibilidade de retorno ao passado glorioso de Modern Society.
A fuga de Sebatian para o reino dos espíritos e o cerco a Lady pareciam confirmar a tendência de que o pouco que restará de justiça e liberdade no reino estava fadado a ser sufocado pelo poder e pela perfeição do cavalheiro. Pouco a pouco, as vilas capitularam ao seu comando, setores sociais inteiros embebecidos por uma matemática frígida de dominação, sucumbiam-se as milícias, a resistência e o pensamento livre. O mais perfeito controle dos corpos se instalará, os poucos pontos discordantes eram tolerados pela técnica de The Perfect Knight como estratégia para identificar, rastrear e aniquilar opositores.
Mesmo frente a tudo isto, no momento da tragédia... um cavalheiro renasceu no abismo, algo nisto fez parar os movimentos em qualquer parte de Modern Society, inclusive o próprio vento. Ainda sem nome, sem cor, surgido do espírito coletivo de um povo, criou-se e deu-se a vida. Contrariamente à todas as leis, inclusive as do conhecimento, The Knight iludiu a técnica, os poderes, rompeu as pedras, ressurgindo das cinzas da esperança que o episódio terminara por produzir. Não fora o predestinado, muito menos o mais perfeito, era feio, insosso, insignificante e imperfeito, mas era um cavalheiro, carregado de toda a fragilidade e falibilidade dos sentimentos humanos.